Projeto
de lei preserva trabalhador com alcoolismo
Objetivo é fazer com que a CLT reconheça o que a área de saúde
já comprovou. Desde que aceite se tratar, funcionário não poderia
mais ser demitido por justa causa
Projeto de lei que tramita no Senado propõe dificultar a demissão
do trabalhador alcoolista. O texto atual da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) prevê que o funcionário pode ser demitido
por justa causa em função de “embriaguez habitual ou em serviço”.
A proposta do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) exclui essa possibilidade,
desde que o dependente aceite tratamento. O projeto foi aprovado
na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) e, se não houver recurso,
a matéria seguirá para a apreciação da Câmara dos Deputados.
Dados do Ministério da Previdência Social mostram que, entre
janeiro e novembro de 2009, 11.331 pessoas receberam auxílio-doença
em função do alcoolismo, uma média de quase 34 trabalhadores
afastados por dia.
O objetivo do projeto é que o alcoolismo passe
a ser considerado doença pela CLT e que o trabalhador receba
auxílio como em qualquer outra enfermidade. A dependência do
álcool está presente no Código Internacional de Doenças (CID)
e é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A
recomendação será de que as empresas, ao perceberem que o funcionário
é alcoolista, ofereçam suporte para o tratamento. Entretanto,
não há especificação se o empregador deve arcar com os custos
ou se deve ser acionado o Sistema Único de Saúde.
Para o professor da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR) Marco Antônio Villatore, o projeto
de lei não altera o que já ocorre hoje na realidade do Judiciário.
A maior parte da jurisprudência – decisões anteriores – ficava
ao lado de trabalhadores quando ocorriam casos assim. “A proposta
vem, na verdade, regulamentar uma situação que já existia nos
tribunais”, esclarece. Empregados que desejarem podem entrar
na Justiça contra a demissão e são restabelecidos ao cargo, quando
não ganham indenizações.
Outro fator importante salientado por Villatore é que hoje as empresas têm receio
de demitir por justa causa em função da possibilidade de serem
processadas por assédio ou dano moral. “Há uma indústria do dano
moral hoje. Nenhum empregador quer correr esse risco”, argumenta.
O advogado trabalhista Hélio Gomes Coelho Júnior, professor de Direito do Trabalho
na PUCPR, diz que a empresa que emprega um alcoolista deve encaminhá-lo
para o serviço público de saúde e fica desobrigada de qualquer
obrigação trabalhista enquanto ele estiver afastado. “O que,
aliás, já é recomendado pela jurisprudência dos Tribunais do
Trabalho há muito tempo.” Segundo ele, a demissão por justa causa
em caso de recusa de tratamento é prudente. “É sabido que o álcool
restringe as percepções, potencializa os riscos de acidentes
e desestabiliza o ambiente de trabalho”, afirma.
Saúde
Na área médica o projeto de lei é comemorado.
José Mauro Braz, professor da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e coordenador do setor de pesquisas sobre álcool
e outras drogas, acredita que as pesquisas científicas realizadas
nas últimas décadas exigiam uma revisão da legislação.
Apesar de ver o projeto com bons olhos, Braz
afirma que a empresa deve ter uma equipe qualificada para identificar
e encaminhar corretamente o trabalho. Na UFRJ há uma experiência
inovadora, que prevê um tratamento de 6 meses, com responsabilidades
compartilhadas entre o dependente, a família e o empregador.
O psiquiatra Dagoberto Requião, ex-diretor
do Hospital Nossa Senhora da Luz, argumenta que a mudança na
legislação é um assunto em pauta há mais de quatro décadas. “Desde
que me formei em Medicina isso é discutido.” Para ele, a demissão
do alcoolista é uma desonra e mostra que o preconceito contra
a doença ainda existe na sociedade. “Geralmente o alcoolismo
vem acompanhado de outras doenças, como a depressão, por exemplo”,
argumenta. “Um funcionário que vai resfriado para a empresa todos
os dias não pode ser punido, assim como o alcoolista.”
Requião explica que as causas do desenvolvimento
do alcoolismo são variadas entre a vulnerabilidade biológica,
psicológica e social. Ainda não há estudos que comprovem a predominância
de uma delas. Por isso, o psiquiatra acredita que as empresas
têm um papel fundamental no esclarecimento dos funcionários.
“Estudos mostram que para cada dólar investido em prevenção,
as organizações economizam cinco.”
Ressalvas
O médico psiquiatra Gustavo Pradi Adam, integrante
da coordenação da área de saúde mental da Secretaria Municipal
de Saúde de Curitiba, vê com cautela o projeto de lei aprovado
pelo Senado. Ele acredita que pode haver mau uso da legislação
e critica a imposição de auxílio. “Para que o tratamento dê certo,
é preciso trabalhar a motivação do paciente.” Além disso, será
preciso profissionais capacitados para decidir qual o melhor
tipo de encaminhamento, que pode variar desde a internação em
um hospital psiquiátrico até o atendimento-dia nos Centros de
Atenção Psicossocial para Dependentes Químicos (Capsad). “Dependendo
do rumo do projeto, pode ser que não funcione.”
“Ninguém queria mais olhar para mim”
João* está há 21 anos, 2 meses e 18 dias sem
consumir álcool. Mas passou quase o mesmo período sofrendo com
a dependência. No início a doença era silenciosa e o funcionário
público se recusava a admiti-la. “Perdi tudo e precisava tomar
uma decisão. Ninguém queria mais olhar para mim.”
Quando estava prestes a perder o emprego,
decidiu que precisava de ajuda. Foi quando conheceu o grupo Alcoólicos
Anônimos. Lá começou a mudar de vez sua vida. Na família conseguiu
restabelecer os laços, mas no mercado de trabalho a situação
foi diferente. Mesmo com a estabilidade do emprego público, João
sentiu o preconceito.
Somente depois de cinco anos sem beber os
colegas passaram a respeitá-lo novamente. “Era deixado sempre
em segundo plano. Ninguém quer trabalhar com um alcoolista.”
Ao se aposentar, ele já havia galgado postos antes impossíveis
em função da dependência.
Hoje é convidado inclusive para dar palestras
no antigo emprego. “Se o alcoolismo é uma doença reconhecida
pela comunidade médica, os doentes devem ter o mesmo tratamento
dos demais. É a mesma medida para todos.”
Sem justa causa
O projeto de lei poderá facilitar o diagnóstico e tratamento
da doença. Para especialistas, não é justo que o doente
seja penalizado. Apesar disso, ainda há pontos não esclarecidos.
Confira:
Diagnóstico
Médicos afirmam que o diagnóstico
deve ser feito por uma equipe especializada. Há inúmeros
critérios, como perda do controle e síndrome de abstinência,
que devem ser levados em conta. Quem deve fazer esse
diagnóstico quando a empresa suspeitar de um funcionário?
Ela deverá ter profissionais próprios? Isso não é especificado
no projeto de lei.
Tratamento
O mesmo ocorre com o tratamento.
A empresa deve pagar ou deve ser usado o Sistema Único
de Saúde? Hoje há diversas “correntes” de tratamento,
que vão desde o internamento em hospitais psiquiátricos
até o tratamento-dia nos Centros de Atenção Psicossocial
(CAPS).
Prevenção
O projeto poderia avançar,
segundo especialistas, na prevenção. Hoje não há uma
resposta única sobre as possíveis causas do alcoolismo.
Há fatores biológicos, sociais e psicológicos, mas não
se sabe a “medida” de cada um. Por isso investir em prevenção
ainda é o melhor caminho.
Passos em falso
Confira os elementos que caracterizam a Síndrome de Dependência
Alcoólica:
1º – Tolerância – necessidade
de doses progressivamente maiores para atingir o efeito
desejado e/ou efeito significativamente reduzido com
o consumo da mesma dose.
2º –Síndrome da abstinência
– É uma síndrome com ao menos dois dos seguintes sintomas:
hiperatividade autonômica (suor, palpitações...), tremores,
insônia, náuseas ou vômitos, agitação psicomotora, ansiedade,
alucinações ou ilusões visuais, táteis ou auditivas,
convulsões.
3º – Perda do controle – o
alcoolista consome maior quantidade ou por mais tempo
que pretendia.
Desejo persistente ou tentativas
frustradas de controlar o uso.
Passa a gastar cada vez mais
tempo com a substância.
Atividades sociais, ocupacionais
ou recreativas importantes são deixadas em segundo plano.
O uso do álcool persiste,
apesar da consciência do problema.
Fonte: Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais, American Psychiatric
Association.
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Fonte: Gazeta do Povo
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